.
Existe uma instituição penal ou educativa chamada de O Poço.
Em cada nível existem duas pessoas que são alimentadas por uma plataforma ou mesa que desce com comida.
Os níveis superiores podem comer bem e, à medida que a mesa desce,
as celas inferiores recebem pouco ou nada.
O filme começa com a personagem Goreng, despertando no nível 48 junto a um companheiro de cela chamado Trimagasi, que explica ao novato como funciona o sistema.
O filme trata de uma metáfora óbvia: a sociedade é desigual e os de cima não se preocupam com os de baixo.
Leitura de um sistema no qual, como diz Trimagasi, é “comer ou ser comido”.
Há alimento para todos, porém o egoísmo produz fome.
Existe um nível psicológico: submeter personagens a situações limite para discutir a condição humana é um recurso clássico.
Ocorre com O Senhor das Moscas (romance de William Golding) ou nas peças de Samuel Beckett ( a crítica internacional apontou um traço de Esperando Godot, mas eu indicaria, também, a influência de Fim de Partida).
O choque de mundos de Goreng e Trimagasi é o atrito entre a visão idealista e realista.
A palavra-chave de Trimagasi é “óbvio” porque, para o prisioneiro mais velho, tudo está inserido em regras claras, naturais e que exigem adaptação para sobreviver.
Goreng questiona tudo do sistema do poço.
O símbolo das duas atitudes está na escolha do que levar para o poço: o realista traz uma faca, chamada de: Samurai Plus, e o idealista um livro (D. Quixote). Pegando o tema de Cervantes, teríamos D. Quixote e Sancho Pança.
Que preço estaríamos dispostos a pagar pelo que fizemos ou por um diploma?.
Sobreviver é só o que importa?.
Quanto mais fundo se desce, maior o sofrimento.
A ideia está no Inferno da Divina Comédia.
Há uma referência religiosa da culpa.
O mais importante é tomar consciência do próprio pecado.
Trimagasi matou alguém e optou por aquela pena no poço.
Goreng busca certificados, uma espécie de esforço de meritocracia e de competitividade.
Ao contrário de Dante, existe mobilidade no Inferno e isso permite que opressores sejam oprimidos.
A experiência da dor da fome pouco ou nada ensina aos apenados.
Existe um mundo de planejamento, tecnocrático e muito elaborado.
Na entrevista, perguntam sobre alergias e cuidados. Na cozinha luxuosa, a apresentação é tudo e a qualidade e higiene é rigorosa.
Na prática, todo o planejamento 'estatal'? resulta inútil e em desastre.
Quem organiza a seleção e a alimentação não possui visão do todo.
A mesa volta sempre sem nada e isso pode ser lido na cozinha como êxito da culinária.
Se a panacota voltar intacta, isso pode ser uma mensagem de que algo não funciona.
A funcionária que trabalhou 25 anos na seleção também diz nada saber.
Existe uma síndrome do mal banal.
Quem pensa o modelo não sabe como ele funciona e quem sofre o planejamento não tem acesso aos que elaboram tudo.
Todos cumprem ordens.
O filme é anterior ao coronavírus mas serve perfeitamente ao momento.
Tenho de me salvar, comprar o máximo possível, salvar a mim.
Pouco ou nada me importam os outros.
Assim, como no filme, a teoria de Hobbes supera a de Rousseau: a natureza humana é má e egoísta.
Uma criança seria a esperança?.
Um bom selvagem?.
Existiria de verdade ?.
Só a ameaça educa (“vou defecar na sua comida”) e só funciona para baixo.
Não existe bom-senso, apenas ameaça.
É o mundo hobbesiano que precisa de Estado forte. Em plena epidemia, é o Estado (democrático, por sinal) que está ditando regras de controle cada vez mais amplas.
Para salvar a vida, abrimos mão da liberdade e da própria humanidade.
Só queremos viver.
Todo o resto é secundário.
O sucesso do Poço não é acidental.
A principal angústia d’O Poço é querer enquadrar a obra em uma proposta de esperança.
O filme é realista, politicamente maquiavélico
(no sentido de não mostrar o mundo como deveria ser, todavia como é).
A ideia de que existe um sentimento mais forte como a maternidade que se possa se impor à barbárie é falsa.
A mãe, ao procurar a filha, mata, trucida e pratica canibalismo.
É uma egoísta para duas pessoas.
Os outros são egoístas individuais.
O amor materno não redime.
Defender a filha é defender apenas a si e ao seu narciso.
A perturbação com o final ( estariam mortos?, são fantasmas?, aquilo ocorreu de fato?)
andam de mãos dadas com o próprio sentido da criança: é uma mensagem, porém a mensagem não redime e não significa nada.
A civilização é uma casca frágil, o canibalismo surge em uma semana, somos educados e com fé só se estivermos alimentados.
Somos um corpo com necessidades e que, para escapar à dor, criamos metafísica.
É isso que incomoda no filme.
Quando as pessoas dizem, quase em coro: “não entendi o final” , reclamam, no fundo, da ausência de uma cena que produza a redenção, o sentido e a esperança.
Toda a internet é um sistema de panóptico que trouxe a possibilidade de ampliar nosso ancestral desejo de examinar outras existências.
A sociedade distópica do poço não ficaria melhor se todos fossem alimentados ou o próprio sistema destruído.
As mentes que elaboraram o poço continuariam lá.
O que substitui a tirania de Nicolau II é a ditadura de Lênin e de Stálin.
O que vem depois da Bastilha é a ditadura de Napoleão e a sociedade burguesa e excludente da França.
O poço foi apenas uma maneira de exercer as voltas do poder e o sadismo do controle.
Como a internet ou a quarentena, são expressões conjunturais e históricas de coisas estruturais.
Em período de crise, adoraríamos uma mensagem de esperança e de redenção.
O Poço recusa nossa vontade e piora a percepção do mundo.
Quem suportaria olhar para a Medusa e sobreviver?. Quem conseguir olhar para seu poço, e descer nos níveis mas obscuro das suas razões, talvez conseguirá sair das suas próprias prisões.
Existe uma instituição penal ou educativa chamada de O Poço.
Em cada nível existem duas pessoas que são alimentadas por uma plataforma ou mesa que desce com comida.
Os níveis superiores podem comer bem e, à medida que a mesa desce,
as celas inferiores recebem pouco ou nada.
O filme começa com a personagem Goreng, despertando no nível 48 junto a um companheiro de cela chamado Trimagasi, que explica ao novato como funciona o sistema.
O filme trata de uma metáfora óbvia: a sociedade é desigual e os de cima não se preocupam com os de baixo.
Leitura de um sistema no qual, como diz Trimagasi, é “comer ou ser comido”.
Há alimento para todos, porém o egoísmo produz fome.
Existe um nível psicológico: submeter personagens a situações limite para discutir a condição humana é um recurso clássico.
Ocorre com O Senhor das Moscas (romance de William Golding) ou nas peças de Samuel Beckett ( a crítica internacional apontou um traço de Esperando Godot, mas eu indicaria, também, a influência de Fim de Partida).
O choque de mundos de Goreng e Trimagasi é o atrito entre a visão idealista e realista.
A palavra-chave de Trimagasi é “óbvio” porque, para o prisioneiro mais velho, tudo está inserido em regras claras, naturais e que exigem adaptação para sobreviver.
Goreng questiona tudo do sistema do poço.
O símbolo das duas atitudes está na escolha do que levar para o poço: o realista traz uma faca, chamada de: Samurai Plus, e o idealista um livro (D. Quixote). Pegando o tema de Cervantes, teríamos D. Quixote e Sancho Pança.
Que preço estaríamos dispostos a pagar pelo que fizemos ou por um diploma?.
Sobreviver é só o que importa?.
Quanto mais fundo se desce, maior o sofrimento.
A ideia está no Inferno da Divina Comédia.
Há uma referência religiosa da culpa.
O mais importante é tomar consciência do próprio pecado.
Trimagasi matou alguém e optou por aquela pena no poço.
Goreng busca certificados, uma espécie de esforço de meritocracia e de competitividade.
Ao contrário de Dante, existe mobilidade no Inferno e isso permite que opressores sejam oprimidos.
A experiência da dor da fome pouco ou nada ensina aos apenados.
Existe um mundo de planejamento, tecnocrático e muito elaborado.
Na entrevista, perguntam sobre alergias e cuidados. Na cozinha luxuosa, a apresentação é tudo e a qualidade e higiene é rigorosa.
Na prática, todo o planejamento 'estatal'? resulta inútil e em desastre.
Quem organiza a seleção e a alimentação não possui visão do todo.
A mesa volta sempre sem nada e isso pode ser lido na cozinha como êxito da culinária.
Se a panacota voltar intacta, isso pode ser uma mensagem de que algo não funciona.
A funcionária que trabalhou 25 anos na seleção também diz nada saber.
Existe uma síndrome do mal banal.
Quem pensa o modelo não sabe como ele funciona e quem sofre o planejamento não tem acesso aos que elaboram tudo.
Todos cumprem ordens.
O filme é anterior ao coronavírus mas serve perfeitamente ao momento.
Tenho de me salvar, comprar o máximo possível, salvar a mim.
Pouco ou nada me importam os outros.
Assim, como no filme, a teoria de Hobbes supera a de Rousseau: a natureza humana é má e egoísta.
Uma criança seria a esperança?.
Um bom selvagem?.
Existiria de verdade ?.
Só a ameaça educa (“vou defecar na sua comida”) e só funciona para baixo.
Não existe bom-senso, apenas ameaça.
É o mundo hobbesiano que precisa de Estado forte. Em plena epidemia, é o Estado (democrático, por sinal) que está ditando regras de controle cada vez mais amplas.
Para salvar a vida, abrimos mão da liberdade e da própria humanidade.
Só queremos viver.
Todo o resto é secundário.
O sucesso do Poço não é acidental.
A principal angústia d’O Poço é querer enquadrar a obra em uma proposta de esperança.
O filme é realista, politicamente maquiavélico
(no sentido de não mostrar o mundo como deveria ser, todavia como é).
A ideia de que existe um sentimento mais forte como a maternidade que se possa se impor à barbárie é falsa.
A mãe, ao procurar a filha, mata, trucida e pratica canibalismo.
É uma egoísta para duas pessoas.
Os outros são egoístas individuais.
O amor materno não redime.
Defender a filha é defender apenas a si e ao seu narciso.
A perturbação com o final ( estariam mortos?, são fantasmas?, aquilo ocorreu de fato?)
andam de mãos dadas com o próprio sentido da criança: é uma mensagem, porém a mensagem não redime e não significa nada.
A civilização é uma casca frágil, o canibalismo surge em uma semana, somos educados e com fé só se estivermos alimentados.
Somos um corpo com necessidades e que, para escapar à dor, criamos metafísica.
É isso que incomoda no filme.
Quando as pessoas dizem, quase em coro: “não entendi o final” , reclamam, no fundo, da ausência de uma cena que produza a redenção, o sentido e a esperança.
Toda a internet é um sistema de panóptico que trouxe a possibilidade de ampliar nosso ancestral desejo de examinar outras existências.
A sociedade distópica do poço não ficaria melhor se todos fossem alimentados ou o próprio sistema destruído.
As mentes que elaboraram o poço continuariam lá.
O que substitui a tirania de Nicolau II é a ditadura de Lênin e de Stálin.
O que vem depois da Bastilha é a ditadura de Napoleão e a sociedade burguesa e excludente da França.
O poço foi apenas uma maneira de exercer as voltas do poder e o sadismo do controle.
Como a internet ou a quarentena, são expressões conjunturais e históricas de coisas estruturais.
Em período de crise, adoraríamos uma mensagem de esperança e de redenção.
O Poço recusa nossa vontade e piora a percepção do mundo.
Quem suportaria olhar para a Medusa e sobreviver?. Quem conseguir olhar para seu poço, e descer nos níveis mas obscuro das suas razões, talvez conseguirá sair das suas próprias prisões.
Nenhum comentário:
Postar um comentário