terça-feira, 16 de junho de 2020

O gabinete do ódio

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Abram os olhos e veja quem somos,
veja quem sou, veja quem fomos.
Somos umas bestas no mau sentido.
Somos primitivos, somos primários.
Somos egoístas, somos avarentos.
Somos invejosos, somos malfeitores.
Por nossa causa corre um oceano de sangue todos os dias.
Por nossa causa irriga sangue de inocentes todos os dias.
Não é ouvindo, não é sondando todos os nossos instintos ou encorajando a nossa natureza biológica a manifestar-se que conseguiremos afastar-nos da crueza da nossa condição.
Não é auscultando, investigando, averiguando toda a nossa falta de humanismo, que conseguiremos chegar a perfeição.
Não é pesquisando o ódio que nós temos, que nós sentimos um do outro, que conseguiremos nos amar incondicionalmente.
Os seres humano são deficientes em ser um humano.
Todos nós temos limitações inerentes á nossa condição humana.
Somos inevitávelmente limitados, e se não o fosse, se igualaria a Deus e nada mais precisaria aprender.
Entretanto, somos todos deficientes sentimentais e racionais.
É lendo Platão.
E construindo pontes suspensas.
É tendo insónias.
É desenvolvendo paranóias, conceitos filosóficos, desequilíbrios neuroquímicos insanáveis, sistemas políticos e religiosos.
É conclamando apoiadores para irem aos hospitais para filmar vítimas do COVID, enquanto um pai devastado pela perda do filho reergue cruzes que manifestantes derrubaram em Copacabana.
Todas essas teses nos fazem ser desumanos como um verdadeiro animal diabólico.
É engraçado como cada época se foi considerando ao longo da história.
A pretensão de se ser definitivo, a arrogância de ser o último, a vaidade de se ser futuro é, há milénios, a mesmíssima cantiga.
Temos de ser mais humanos.
Reconhecer que somos as bestas que somos e arrependermo-nos disso.
Temos que nos permitir a fazer coisas certas mesmo se não tiver ninguém olhando, câmeras ou aplicação de multas.
Senão cairemos nas justificativas mais diversas, o que é injustificável no ponto de vista da convivência social.
Ou seja, aprender a perder para ganhar socialmente.
Temos de nos reduzir à nossa miserável insensibilidade, à pobreza dos nossos meios de entendimento e explicação,
à brutalidade imperdoável dos nossos atos.
O nosso pé foge-nos para o chinelo porque ainda não se acostumou a prender-se aos troncos das árvores, quanto mais habituar-se a usar sapato.
Temos que aprender a ser mais humanos.
Tirar todo o ódio que nós temos e recolocar de vez o amor que perdemos como um alfinete de lapela.
Temos que destruir esse gabinete do ódio que construíram sobre um Brasil dominado pelas milícias, dominado pelos radicalistas e grupos de extermínios.
Temos que nos enxergar e entender que a única atitude verdadeiramente civilizada que nós temos é, a fraqueza, a curiosidade, o desespero, a experiência,
o amor desinteressado, a ansiedade artística, a sensação de vazio, a fé em Deus,
o sentimento de impotência, o sentir-mo-nos pequeninos, a confissão da ignorância,
o susto da solidão, a esperança nos outros,
o respeito pelo tempo e a bênção que é uma pessoa sentir-se perdida e poder andar às aranhas,
à procura daquela ideia, daquela casa,
daquela pessoa que já sabe de antemão que nunca há-de encontrar.
Essas poucas coisas, são às que nos resta porque ainda não progredimos de imediato.
Pois o progresso é uma imbecilidade, pelo menos enquanto continuarmos a ser os animais que somos.

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