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Ai que angústia, que tormento... chego a me contorcer por causa desta dor... toda a minha terra está devastada.
Em um instante, todas as nossas barracas e tendas foram destruídas.
Lá vem a chuva, meu Deus, é água que não acaba mais, lá vem o morro, rolando céu abaixo, varrendo o barraco crescido no barro, construído em local impróprio, poluindo a paisagem da cidade apinhada de miséria e pobreza.
Lá vem a chuva, meu Deus, não é novidade não, todo ano ela nos visita, sempre trazendo no colo a destruição e um punhado de mortes e dor, todo mundo sabe, não existem mais inocentes por aqui.
Lá vem a chuva, meu Deus, hoje a gente não dorme, a casa é de tijolo, mas o coração é de papel, sem fundamento, a alvenaria é nada diante da valentia da natureza e o amontado de entulhos, rolando morro abaixo, destrói até a esperança, quanto mais o pouco que se colheu de uma vida inteira de trabalho e suor.
Lá vem a chuva, meu Deus, e com ela lá se vão os meus sonhos, a ilusão de uma vida digna, justa, comida na mesa, filhos na escola, um chão pra chamar de seu e uma cama pra deitar depois do moído da lida, é pouco, mas pra maioria de nós é um luxo que os olhos nunca verão.
Lá vem a chuva, meu Deus, protege pai, protege mãe, guarda os filhos, livra-nos do hálito da morte que nos corteja com esse cheiro de terra e capim, salva-nos da boca aberta na encosta do morro que quer nos tragar com apetite voraz.
Lá vem a chuva, meu Deus, vou correr pra acender uma vela, fazer uma prece, uma promessa qualquer, quem sabe alguém ouve e se compadece de nós que somos esquecidos de tudo, nessa encosta dos dias.
Lá vem a chuva, meu Deus, o raio corta o céu cinzento como se fosse faca amolada na carne seca, depois, o zunido do trovão nos faz calar, o morro fica em silêncio reverente esperando a hora de gritar por socorro, ainda que se saiba que ninguém que importa vai ouvir.
Lá vem a chuva, meu Deus, mas fazer o quê, é só um dia a mais nessa agonia de viver, amanhã, se a gente acordar, a gente vê o que vai fazer, enterra quem morreu, tira na vassoura e no balde a lama que soterrou a casa, a alma e a vida.
Lá vem a chuva, meu Deus.