segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Os costumes da vida

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A gente se acostuma a trabalhar em repartições que parecem caixas,
a sentar em cadeiras desconfortáveis,
a usar calça social, gravata que aperta, ligamos nosso ar condicionado, e assim, logo se acostuma com as janelas fechadas,
logo se acostuma com o vidro escuro, logo se acostuma com a impossibilidade de assistir ao pôr-do-sol, logo se esquece da hora.
A gente se acostuma a chegar tarde em casa e jantar rápido para dormir logo.
De tão rápido, nem vale a pena se reunir à mesa, logo se acostuma a comer no sofá vislumbrando as imagens da telenovela enquanto se alimenta depressa.
Assim se perde o sabor, a comida esfria, as conversas cessam.
A gente se acostuma com horários que não batem, a dizer “hoje eu não posso”. A não dar atenção à quem amamos. Dormimos exaustos, sem ver nosso filho, nossa esposa, nossa mãe.
A gente se acostuma a abrir os olhos com a escuridão do dia que mal amanheceu.
A se entupir de café para acordar e a pagar caro pela condução.
A gente se acostuma a dar bom dia pro motorista que já se acostumou com a nosso rosto, e a ficar em pé no ônibus cheio, ouvindo o noticiário da manhã para não perder o tempo da viagem durante o congestionamento de duas horas.
A gente se acostuma com o jornal que te informa sobre a violência do centro, a chacina na comunidade, o trânsito da Brasil, a falta de leitos nos hospitais e a corrupção da polícia e do Planalto Central.
A gente se acostuma a temer.
Com o medo vivemos em nossos condomínios fechados, acionamos sistemas de segurança, contratamos guaritas, alongamos os muros, fixamos cercas elétricas, brindamos nossos carros.
A gente se acostuma com a violência. Voltamos antes do toque de recolher, logo se acostuma a sair em bando, a rezar, a dar satisfação.
A gente se acostuma com o abismo social, com o racismo estrutural, com o tráfico, com a pobreza.
E à medida que se acostuma, acha normal, naturaliza-se.
A gente se acostuma com a miséria de amor e com a pobreza de espírito. Recolhemos migalhas, nos contentamos com pouco.
Logo se acostuma a viver em relacionamentos tóxicos e abusivos ou frios, mornos, sem sal, sem açúcar, sem tempero nenhum.
A gente se acostuma a sair com as pessoas e gastar mais tempo encarando o celular do que olhando nos olhos. Mesmo assim voltamos para casa contentes.
Dormimos com a sensação de dever social cumprido.
A gente se acostuma com a ansiedade, com a claustrofobia, com os pânicos.
Não se mexe em feridas, não se abre o coração: a ignorância é uma benção e o autoconhecimento desnecessário.
Logo se acostuma a sentir vergonha da tristeza e engolir o choro.
Ser forte é colocar tudo debaixo do tapete.
A gente se acostuma com as incertezas da juventude, com a desilusão da meia idade, com as limitações da velhice.
As fraquezas de cada fase: não dá porque tenho que estudar,
não dá porque preciso trabalhar,
não dá porque estou muito velho,
meu tempo já foi.
A gente se acostuma a viver de nostalgia, esquecer das datas, errar os nomes, repetir as frases e andar devagar.
A gente se acostuma com o fato da morte e nos preparamos para o fim inevitável.
Todo mundo sabe que vai morrer,
a gente só não sabe que é possível padecer em vida,
um dia de cada vez, se acostumando.
Sim, a gente se acostuma.
Mas não devia.
A gente se acostuma a desistir dos nossos sonhos.
A gente se acostuma a viver como uma máquina.
A gente se acostuma a se conter.
A gente se acostuma a passar sempre pelo mesmo caminho e nem mesmo olhar ao redor.
A gente se acostuma com rotinas sem sentido.
A gente se acostuma a achar que não pode mais.
A gente se acostuma a achar que podemos pouco.
A gente se acostuma a achar que já passou da hora.
A gente se acostuma a se acomodar.
A gente se acostuma a se acostumar com tudo,
até o que fazemos de pior ou o que deixamos de fazer de melhor.
A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta e que,
gasta de tanto se acostumar,
se perde de si mesma.

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